VALIE EXPORT

Um nome inventado para uma artista de quina.

por Gabriela Gaia

A primeira vez que eu a vi foi jogada na rua, entre uma esquina e outra. Uma tinta vermelho-sangue circulando o entorno. Body Configurations (1972-76). 

18e7b88271eeeac93a230b02351b65f2.jpg

E então, seu corpo-contorno casa-se com os postes, dobra-se sobre as escadas dos grandes monumentos, deita-se aos moldes dos degraus, faz ângulos retos, oblíquos e obtusos com pilastras. Um sexo com a cidade. Quando vejo, estou há horas vendo suas fotos, suas performances, seus vídeos, entrevistas, uma levando à outra. Mais tarde descubro que o vermelho incandescente que me marcou era tinta guache, aquelas de criança mesmo, o que me alarga ainda mais o coração.

unnamed (2).jpg
unnamed.jpg
unnamed (1).jpg

Adaptação, simulação, demarcação, denúncia. Saudade de lamber um asfalto e se esfregar no chão, né minha filha? Daqui, também - mas voltemos à nossa protagonista. O nome, VALIE EXPORT. Assim, com letras maiúsculas, tal qual bell hooks com letras minúsculas - por uma questão de propósito.

3d7f7b4684d792a1af1090f7d6a913ad.jpg

Gosto de começar por aqui: o nome. Quando não sabem seu nome, faça questão de ser a primeira a dizê-lo. O nome como a primeira performance. Viena, fim dos anos 60. Uma mulher, vinda do interior, deixando aos cuidados de familiares um filho recém nascido, chega à cidade. Na cena das artes visuais, se auto-denomina assim: VALIE EXPORT. Valie como um apelido. Export, o nome de uma marca de cigarro à época, porque exportava suas ideias, expunha elas no front. E quando digo “expor”, eu falo sério. Num contexto pós Maio de 68, EXPORT se depara com uma cena vienense de vanguarda e contracultura onde os cineastas criticavam a forma, mas usavam do mesmo conteúdo: a exploração e instrumentalização do corpo feminino, que é o dispositivo para gerar um prazer visual, mas nunca actante, individualizado e com liberdade de ação. Ela resolve então criar o que chama (e eu venero) de EXPANDED CINEMA.

O cinema expandido da artista borra todas as linhas entre o cinema clássico (você-uma sala escura-um filme passando) e a performance. Traz o desconforto para a discussão. E cria - palavras minhas -  o cinema 4D muito antes de qualquer megaempresa falar disso. EXPANDED CINEMA experimenta novas formas de comunicação, de construção e desconstrução da realidade. É o corpo, sobretudo o feminino, tomando a cidade. De canudinho. 

cri_000000250441.jpg

Em Tapp und Tastkino ou Touching Cinema (1968 ⁄ 1989), VALIE saía às ruas com uma caixa junto ao peito (de fora), e uma placa anunciando a sessão. As pessoas da rua - imagine só, há mais de quarenta anos atrás - formavam fila para assistir ao cinema da caixa escura que ela carregava. Segundo Yan Beauvois em um artigo sobre EXPORT,  ‘ em "Tapp und Tatskino" ela autoriza quem quiser a tocar seu corpo-tela, seus seios.’, expondo e denunciando assim o voyeurismo ao ‘esticá-lo, levando às últimas conseqüências, ao desconforto’.

60e0c303e9.jpg

Um cinema de conteúdo, mais do que a forma. O cinema como um lugar de troca. Em "Cutting" (1967-68): ela não cortava a película (forma de edição da época), mas o corpo da tela iluminada pelo projetor. O som do corte, do projetor e do filme sem som constituíam a trilha sonora.

Em Menschenfrauen (Mulher Humana), em 1979, VALIE coloca duas mulheres grávidas, Anna e Petra, para se beijam em um restaurante, provocando um protesto geral. Com Genitalpanik (1969) ela expõe seu sexo para a visão dos espectadores de um cinema onde entra, munida de uma arma, numa referência clara à Angela Davis.  “O escândalo chamava atenção das pessoas porque dava espaço para a agressão”, diz ela em uma entrevista. Veja bem, eu não estou aqui por nada senão pela poesia das coisas. A ousadia da poesia radical. E isso, não há como se negar em EXPORT.

VALIE-EXPORT.jpg

As obras são muitas, e eu jamais daria conta de todas, ou de uma boa parte, aqui. E nem preciso: tem um amplo material sobre a artista na internet, do Moma ao Tate, passando por filmes no Youtube, muitas imagens e artigos no Google. Mas não posso deixar de falar da minha preferida, e que influenciou diretamente a forma como vejo e conto o mundo: INVISIBLE ADVERSARIES (1976). O filme, uma união generosa entre o cinema-performativo e o cinema de narrativa clássica, começa com uma câmera que sai de um cômodo para percorrer a cidade, enquanto o rádio anuncia: “Atenção! Um inimigo invisível ocupou a cidade e modifica todos os corpos. Qualquer um pode ser um Hykso agora, ou ser contaminado por um. Atente-se à comunicação. Você está sozinho”.

Faço mentalmente uma conexão direta com Byung-Chul Han, a sociedade do controle e a sociedade do cansaço. “Eles adentram o corpo das pessoas e alteram a mente delas. E pelo controle de suas mentes, alteram a sociedade”, diz a rádio, no filme.  A história sobre adversários invisíveis, controle de corpos e um descolamento entre a imagem e o reflexo no espelho nunca me pareceu tão atual - pelo COVID-19, claro, mas pelos mesmos motivos de 76 também.

Em Invisible Adversaries, performaticamente, os personagens não aceitam seus papéis, fogem deles. O corpo masculino e o feminino são (ex)postos em posições de igualdade e vulnerabilidade. Os planos são inusitados, plásticos, e estão em diálogo constante com a fotografia e a arte visual. Outros trabalhos da artista, como o Body Configurations do qual falei lá em cima, também são incorporados à narrativa.

valerie.jpg

Uma mulher andando sobre patins de gelo, as lâminas cortando o asfalto da plataforma do trem: assim, descrevendo uma das cenas de Invisible Adversaries, eu descreveria também o trabalho de VALIE EXPORT, uma artista de interseções, esquinas, encruzilhadas. O filme está disponível online. Acho-o bonito. Sim. É bonito. É bonito também ver a radicalidade do trabalho de EXPORT contrastado com a doçura de suas entrevistas atuais: uma senhorinha à lá Agnés Varda, de olhos e tom doce, falando sobre conceitos e performances que deixam qualquer artista-avant-garde-ready-made-do-instagram no chão. 

É bonito olhar para tudo que já foi feito, e lembrar que não estamos aqui pra inventar a roda. Ao meno assim tenho pensado eu. Estamos aqui pra tocar, sentir sua textura, e com sorte, fazer com que haja solo para que a roda continue girando.

eu-phill-5.jpg

Gabriela Gaia

Gabriela Gaia Meirelles é uma cineasta, roteirista e artista multimídia nascida no Rio de Janeiro, Brasil. Seu trabalho busca a interseção entre o sincretismo da cultura popular, a subversão dos papéis de gênero e o realismo fantástico para construção de  perspectivas e narrativas decolonizadoras. Seu curta-metragem mais recente, AFETO (2019, 15’), filme sobre arquitetura e ocupação feminina do espaço urbano, foi vencedor do Saint Lucia Prize for Best International Experimental Short Film 2019 no 17º Bogoshorts, Colômbia; menção honrosa no Festival de Cinema de Vitória e eleito melhor curta-metragem em outros cinco festivais nacionais.(www.gabrielagaiameirelles.com)

Previous
Previous

Sábado foi um dia muito auspicioso

Next
Next

Emblemático