Sábado foi um dia muito auspicioso

por Michelli Provensi

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Sábado foi um dia muito auspicioso. Diz a astrologia védica, o mais auspicioso do ano. Melhor nem pensar assim, já passou. Não escrevi nada naquela data, porque estava ocupada observando todas as esquinas do dia, pra sentir se era mesmo um fato histórico ou algo que se apresentava pra mim. No calendário hindú se comemora o Akshaya Tritiya: um dia de exaltação da lua e do sol, uma ilha de luz no meio do caos – podemos dar um check neste quesito - um dia livre das urucas, de qualquer planeta em trânsito pelo céu. Excelente dia para começar uma prática espiritual ou reavivar uma. Dia pra fazer benfeitorias e também, um bom dia para pedir ajuda aos deuses. Nisto, a gente é especialista, pedir ajuda. Eu tenho pedido auxílio a São Longuinho, todo os dias. Estou há tanto tempo em casa, que me embaralho na minha bagunça e aos poucos, percebo a falta de alguns objetos – veja bem, onde foi parar o meu anel? Por aqui, neste auspicioso sábado, 25 de abril, se comemorou o dia do despachante aduaneiro. Eu não conheço nenhum despachante aduaneiro pra dar parabéns, mas posso felicitar o Amirati - meu contador - já que o auspicious day, também é dia do contabilista. Da varanda de casa vejo o Lagartixa chegar para alimentar os cachorros. A matilha da rua faz festa.

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Churrasqueiro é o mais animado, seguido da Borracha – que até então eu chamava de Racha – Romário, Tobias, Berne e Gaúcho. A Racha é mãe de todos. As vezes, eu a confundo com o Churrasqueiro, pois são iguais de pelagem. Sei quem é quem, quando fazem xixi ou na hora de dormir. Churrasqueiro dorme em um montinho de galho seco, em frente ao terreno baldio do Lagartixa, meu vizinho. Borracha, dorme junto com Tobias e Romário, num buraco em baixo das bananeiras, ao lado de casa. Acho que Tobias é cego, coitadinho. Tem os olhos feito duas bolitas azuis opacas e o pelo, caramelo. Todo dia, ele chega um palmo mais perto da minha casa e consigo ver por detrás daqueles olhos anuviados e tristinhos, a vontade de que eu o carregue pra dentro quando anoiteça, junto com Malú, minha cadelinha. No entanto, sábado foi um dia muito auspicioso para Tobias. Sobrou frango com quiabo e quando fui pegar as sobras pra cachorrada -encontrei meu anel na geladeira. Como só tinha ele por perto, se deu bem, lambuzou- se todo na gosma do quiabo. Auspicioso vem do latim auspicium – adoro que as palavras em latim parecem quebrantos do Harry Potter – diferente de hospício. Veja, consigo até fazer uma relação entre elas: quando acontecem coisas “auspiciosas” com a gente e ninguém vê, tem uns que pensam que você ficou louca. Tal como os fenômenos -não dá para explicar um fenômeno- quando a gente tenta explicar um, já não é mais. Onde estou, em São Gonçalo do Rio das Pedras, Minas Gerais, não tem internet em casa. Pra pegar sinal tem que subir o morro, colar na igreja ou descolar a senha de alguém local e ver as redes sociais dentro do carro, para não estragar a quarentena dos outros. Sem lives, nem televisão.

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Com as bênçãos de São Gonçalo – imagino que este seja o padroeiro da comunidade – no dia auspicioso consegui entrar numa vídeo conferência com meu mestre no Nepal, que não via a mais de três anos. Ele contou aos alunos: - Hoje, as 6hs da manhã quando estava nas montanhas a meditar, escutei um tigre rugir. Os antigos dizem que quando isso acontece, é porque as enfermidades estão indo embora. Fiquei pensando nas matérias que li sobre os animais selvagens, invadindo as ruas das cidades desertas, por conta da quarentena. Vai, que a gente passe tanto tempo em casa, que voltem seres até então sabidos extintos? Já pensou ir ao mercado da Mariquinha comprar cebola roxa e dar de cara com um maçarico-esquimó ou uma perereca-verde-da- fímbria!

Sabe quem fez 80 anos neste 25 de abril? O Al Pacino, dá para acreditar? Aliás, como estarão os meus vovôs de coração nessa quarentena: Mick Jagger, Gilberto Gil, Sergio Sant’Anna, Chico Buarque.... Queridos, todos no grupo de risco. E por falar no Chico, neste mesmo 25 de abril de 2020 era pra ele ter recebido o prêmio Camões, em Portugal. Escolheu essa data, por ser o aniversário da revolução dos Cravos, dia da liberdade. Mas a pandemia postergou o prêmio e como diz ele na versão de 1975 de Tanto Mar: ” La faz primavera pah, cá estou doente, manda urgentemente um cheirinho de alecrim.” Neste mesmo dia auspicioso, o rio Ganges desceu à terra sobre a cabeça do senhor Shiva -deve ter muita gente furando a quarentena na India, pra molhar o pezinho no Ganges. Por aqui, está proibido banhar nas cachoeiras todavia, dá pra fazer uma caminhada até a grota-seca.

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Foi quando na minha percepção, aconteceu algo, uma coisa quase a altura de um fenômeno, a própria “auspiciosidade”. Nem tinha chovido, mas pela umidade do ar, formou-se um imenso arco-íris no pôr-do-sol sobre as montanhas. Nisso, subindo a estrada, naquele morro, arco na cabeça, me senti querida pelo inominável que chamam de Deus.

Uma borboleta azul chegou bailando, me deu um passe.

Talvez, como humanidade, a gente esteja na lama, mas eu prefiro olhar para as borboletas enquanto desatolo.

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Michelli Provensi

Michi é escritora, apresentadora, cantora, dj, modelo e faz tudo isso melhor do que você está pensando. Escreve porque cura, tem a letra tão corrida que logo se desconfia: é receita médica ou psicografia?

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