Ilha

por Ana Chrysostomo

Ilustração de novos tormentos de Ana por Victoria O'May. @victoria_omay

Ilustração de novos tormentos de Ana por Victoria O'May. @victoria_omay

A verdade é que as pessoas estavam distantes há muito tempo.

Elas só não se davam conta. Ou davam, mas disfarçavam a falta de proximidade pelos likes, coraçõezinhos, carinhas sorrindo nas redes sociais.

Ele era distante por opção. 

Não que se achasse superior, no fundo, acreditava se bastar.

Ficar preso, dentro de casa, só com a sua própria companhia, não parecia ser um problema.

Era o seu dia a dia.

Com a desculpa que sempre precisou, se distanciou até da voz das pessoas.

O nome era quarentena. Não pensávamos em ficar 40 dias dentro de casa.

A princípio, seriam dez, quinze no máximo. Mas as coisas saíram do controle.

No 20º, ele acordou, se olhou no espelho, reparou que tinha alguma coisa estranha na sua aparência, não soube dizer exatamente o que.

Preparou o seu café. 

Regou as plantas.

Comeu duas torradas.

Sentou no sofa.

Dormiu.

Depois do 12º dia, os dias, passaram a ter essa dinâmica. 

A gente acha que não tem idéias geniais porque não tem tempo. E, quando tem, o mais próximo do genial é dormir. Por horas. Para esse tempo, passar depressa.

No 21º, ao se olhar no espelho percebeu que faltavam as suas orelhas. Era isso que havia estranhado no dia anterior. Como não ouvia a voz de ninguém, nem o barulho da rua, só a sua respiração não se deu conta antes.

A semana foi passando. Cada vez que acordava e se olhava no espelho, uma parte do seu  corpo faltava.

Depois da orelha, foi a boca, que ainda estava lá, mas não abria.

Não tinha fome, não tinha com quem falar. Não tinha porque mexê-la.

Até ai, estava achando bom. Nada fazia falta.

Para estar com ele, o que ainda tinha era suficiente.

Quando a primeira mão, a esquerda, desapareceu, sentiu um pouco mais. Mas no fim do dia, destro, já estava acostumado. Fazia tudo com a mão direita.

O sumiço da mão direita foi mais sofrido.

Nunca tinha parado para pensar o quanto sentia falta de esbarrar em alguém.

Do mesmo jeito que pensava estar acostumado a viver só, com a sua propria companhia, ele foi se acostumando a viver sem as partes do corpo que iam sumindo.

Cada dia, uma.

O mais importante, os olhos, continuavam lá.

Cada vez que olhava pela janela a cidade vazia, lembrava de quando era uma pessoa com todas as partes.

Com todas as vozes que estavam ao seu redor, com todos os outros que ocupavam espaço numa mesma vida.

Começou a sentir saudade. 

Ele era boa gente, tinha grandes interesses, conhecimento de um mundo todo. Falava umas 3 línguas com fluência. Mas dentro daquele apartamento, ele, com ele mesmo, não tinha muito mais o que fazer.

Agora, nem se auto desafiar no xadrez, podia.

Comer feijão com paio.

Reclamar da vida para quem quisesse ouvir.

Ouvir.

Talvez, a gente seja um pouco dos outros.

Quando não temos mais ninguém ao redor, não existe uma razão.

A gente se basta enquanto podemos voltar. Quando não temos mais, é como uma morte.

Saudade sem fim, sem virar amor.

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Ana Chrysostomo

Ana é line producer, escritora enrustida, empreendedora, mãe e às vezes demora um pouco pra responder porque tá fazendo faxina na casa. @anoca_pipoca

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