O tempo

por Ana Chrysostomo

Se um dia pedi para ter tempo. Esse dia já passou. Descobri que eu não sei o que fazer com tempo. Pior, descobri que com tempo, eu não consigo fazer nada além de sentir angústia. Angústia de perceber que não sou a mente criativa que imaginava. A pessoa leve e divertida que me contaram. A cozinheira de mão cheia que conseguiria viver vendendo marmitas, numa emergência. Me sinto péssima pelo pouco que produzo ao longo dos dias que custam a passar. Custam, mas quando vejo, eles passaram e, no máximo, limpei a cozinha e lavei um banheiro. Com tempo, imaginava descobrir um talento  adormecido para a escrita.

Deslanchar (obviamente com sucesso) em uma carreira que jamais suspeitei mas que sempre esteve aqui. Apenas me esperando ter tempo. Esperava meditar (era só tempo que faltava para eu ser um ser humano melhor, mais evoluido). Entoar mantras mentais que me acompanhariam ao longo dos dias.

A verdade, é que tendo todo tempo do mundo, só consegui sentir saudade da falta dele. Dos dias cheios de coisas que a primeira vista pareciam supérfluas. Das reuniões que eu achava que poderiam ser resolvidas em um telefonema. Eu só penso nelas.

Só penso o quanto era bom estar sempre sem tempo, estar sempre no limite do “atrasada”. Comprar livros e não ler sobre o pretexto da “falta de tempo”.

Assistir BBB sem culpa, porque afinal, vivo correndo, quando sento no sofá não posso ver nada que me faça pensar.

Agora, lido com a verdade. 

Mesmo com tempo, eu não leio os livros, eu assisto BBB e ainda fico ansiosa pela vitória da Manu Gavassi. A biografia da Susan Sontag, que tem umas 600 páginas, eu sigo, há dias, na 67.

Eu só precisava de tempo para brincar por horas com o meu filho e propor as mais educativas atividades. Na verdade, eu precisava de muito mais coisas. Ter tempo é a mesma coisa que se olhar no espelho com calma.

Você enxerga cada um dos seus mini defeitos. O que antes parecia um charme, um diastema, vira quase um rombo de caráter. E, a gente aguenta, porque agora, tem tempo.  Não tem desculpa.

Ilustração dos tormentos de Ana por Joana Stickel. @joanastickel

Ilustração dos tormentos de Ana por Joana Stickel. @joanastickel

Se eu pudesse, hoje, voltar os dias, eu teria dado tanto, mas tanto valor para aquela vida corrida.Eu teria engolido o almoço na mesa do trabalho com tanto prazer.Teria votado no paredão.

Assistido 3, 4, 5 vezes Hotel Transilvânia 2, porque sim, cada vez a gente descobre uma coisa nova. E, tudo bem dormir tarde, no máximo, a gente sente um pouco de sono no dia seguinte. Mas como o “dia seguinte” é cheio de coisas para fazer, logo chega de novo a hora de dormir.

Teria sentido menos culpa em entrar no banheiro depois do almoço para falar qualquer bobagem com a minha melhor amiga.

Hoje, eu janto as 18:00, para ver se as 21:00 já estou dormindo. Quando a gente dorme, o tempo passa mais rápido. Esse é um bom truque.

Fazer bolo é outro. As vezes, eles não desenformam, não crescem e gastamos horas nessa expectativa.

A mesma de quem vai agora, torcer pelo Babu. 

Com todo esse tempo, eu pude mudar de opinião.Sim, eu sinto culpa por saber que sou mais do que privilegiada no meio disso tudo.  Todos os dias, eu só peço para que esse tempo todo acabe.

Que tudo isso, passe.

E eu volte a ter o direito de usar a falta de tempo como desculpa.


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Ana Chrysostomo

Ana é line producer, escritora enrustida, empreendedora, mãe e às vezes demora um pouco pra responder porque tá fazendo faxina na casa. @anoca_pipoca

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